Da velha à nova família
As formações familiares são profundamente influenciadas por velhos costumes e, portanto, hábitos dos séculos passados deixam traços nas atuais famílias "pós-modernas". No século XVII, Ariès cita dois fatores que despertam especial atenção, um quanto ao poder patriarcal nas uniões e o outro quanto aos primogênitos. O poder patriarcal era definidor quanto às intencionalidades das uniões, pois "quando se tratava de casamento, ninguém pensava em contestar o poder dos pais nessa questão". Os casamentos arranjados continuavam a ser uma forma de manutenção e expansão patrimonial. Entretanto uma alteração fundamental se instalou nessa "lógica econômica", que consistiu no fim da exclusividade dos bens dirigidos aos primogênitos e, consequentemente, incentivo aos filhos mais novos. Tal mudança causou indignação social e veio acompanhada por outras mudanças socioeconômicas.
No final do século XVII, a privacidade ainda era rara. As casas eram como grandes galpões, e essa ausência de delimitações fazia com que todas as coisas ficassem juntas, "não havia locais profissionais, tudo se passava nos mesmos cômodos em que eles viviam com sua família. Também se dormia, se dançava...". Aos poucos, alguns detalhes se modificaram, como as camas desmontáveis, que passaram a ser fixas e ganharam cortinas. Contudo, o cômodo onde ficava a cama nem por isso passou a ser um quarto de dormir, continuava a ser um local público, onde transitavam e dormiam mais pessoas além da família nuclear (pai, mãe, filhos e parentes próximos). Essas mudanças mobiliárias indicavam uma tranformação de valores, como o surgimento da ambição e da reputação. Para atingir tais valores, ninguém deveria se contentar com sua condição, e, para elevá-la, muitos se sujeitavam a uma polida e detalhada disciplina social, que era disseminada via manuais de civilidade. As mudanças continuam e se intensificam nos séculos seguintes, a família se torna mais fechada (nuclear) e sentimental, ao contrário do modelo anterior, que era mais funcional (a casa como empresa e as crianças que após o parto eram confiadas às amas de leite). As delimitações dos cômodos expõem uma conjunção de influências socioeconômicas da Europa e, dentre as aspirações de civilidade, a gradual passagem dos temas referentes ao corpo e sexualidade da igreja aos médicos.
Assim, nas famílias burguesas do século XVIII, a "nuclearização" e a interdição à masturbação assumiram progressivamente o centro do discurso, da visibilidade e, consequentemente, das preocupações. Nessa época, o problema da carne (pecado carnal) vai se transfigurando num problema do corpo (médico) e, principalmente, do corpo doente. O forte movimento industrial e a urbanização demandavam e justificavam a "normalização dos hábitos". O empenho no controle social e de circulação da informação acabou por interditar os escritos pornográficos, por estarem associados aos atos de políticos, já que as prostitutas relatavam algumas confidências de alguns de seus clientes. Portanto, no início do século XVIII, o problema da sexualidade não estava ligado ao ato sexual em si e nem às orgias, mas ao trânsito de influências: "ao poder". No final do século XVIII, o controle do corpo já estava no âmbito médico, que realizava as demonstrações do perigo físico e, sobretudo, do perigo que emana dos desejos sexuais incontrolados das crianças. A passagem do controle do corpo aos médicos de certo modo simplificou o problema da carne, que passou a ser o controle do contato físico: quem, quando, onde e como se toca. Assim, as interdições da sexualidade passaram para a responsabilidade médico-familiar com a instauração das inspeções feitas pelos pais nas manifestações corporais de seus filhos. O corpo, pelo qual os pais eram, então, inteiramente responsáveis, tinha de ser conhecido e desvelado com o intuito de suprimir os desejos sexuais das crianças. E, de forma ambígua, ao mesmo tempo em que a sexualidade se tornou o grande problema, os espaços e os corpos ficaram mais próximos e expostos, dadas as várias inspeções em camas, roupas, aspecto físico, etc. Portanto, no século XVIII, a ideia predominante da sexualidade infantil era sobre sua não relacionalidade, e sendo as crianças autoeróticas, os pais se isentavam de se deparar com seus próprios desejos.
Dessa forma, a nuclearização da família moderna corresponde a uma mudança nas instâncias dos desdobramentos do poder de alma-corpo para igreja, médicos e pais, e, também, pela crescente urbanização e industrialização. As ideias sobre o incesto divulgadas, sobretudo, no final do século XIX, invertem as ideias predominantes até então: os pais devem se distanciar dos corpos dos filhos, pois são eles próprios os alvos da curiosidade sexual infantil. Tal revelação chocou os padrões morais do século XIX, mas trouxe a possibilidade de lidar melhor com os temas ligados à sexualidade e, assim, os controles sobre a masturbação foram relaxados. Nas famílias proletárias, em meados do século XIX, as campanhas e as ideias veiculadas entre as camadas mais "baixas" eram diferentes das voltadas às camadas mais "altas" e focalizavam o controle da natalidade e a interdição à livre união. Tais preocupações com o proletariado diferiam de cem anos antes, quando as famílias pobres estavam profundamente aderidas às práticas matrimoniais e havia uma "natural-religiosa" restrição à quantidade de filhos. Então, o que poderia estar se sucedendo é que o casamento estava ligado à vida comunitária das aldeias e aos modos aceitos para as transições patrimoniais. Por outro lado, com o incremento do proletariado urbano, os motivos que sustentavam as uniões e o controle da natalidade desapareceram. E, juntamente com a urbanização, as flutuações econômicas e as novas frentes de trabalho demandavam uma população igualmente flutuante e os casamentos decalcaram essa lógica.
Portanto, urbanização consolidou a organização dos movimentos sociais, e esse modus vivendi de total desapego se mostrou perigoso ao Estado, que iniciou campanhas reforçando o valor da estabilidade, do casamento, de quartos separados, de sexos separados, de camas individuais, de famílias em casas separadas com no mínimo dois quartos, etc. Essas campanhas de camadas de isolamento eram exatamente o oposto do que era veiculado, menos de cem anos antes, durante a luta antimasturbação - na qual o controle era realizado pela proximidade e pela possibilidade de visualização do ato proibido. Em síntese, do século XVII (da família permeada pela sociedade e essa fonte de uma elevada pressão, na qual a criança era instrumento a ser modelado para o avanço familiar) até o século XIX (o isolamento e o resguardo familiar da invasão e da pressão social), nota-se a transformação dos preceitos morais, como incremento da privacidade, polimento dos hábitos sociais, surgimento dos manuais de civilidade e melhoria das condições de higiene. A casa/família perdeu o seu caráter de lugar público, e, não sem motivo, que justamente nessa época surgiram os clubes e cafés (os PUBs - public houses). A vida profissional e a vida familiar foram progressivamente delimitadas, como coloca Ariès: "somos tentados a crer que o sentimento da família e a sociabilidade não eram compatíveis e só se podiam desenvolver à custa um do outro".
No início do século XX, houve uma nova transição de valores, no pós II Guerra com a emancipação sexual e econômica da mulher e na década de 70 com o movimento estudantil e a reedição da liberação da mulher (pílula). Esses novos valores colidem com forças histórico-culturais. Forças paradoxais de emancipação e reclusão se fazem presentes no final do século XX: a família resguardada, mas não mais nuclear, pois o marido e a mulher estão fora de casa trabalhando e terceiros fazem as vezes domésticas; e a moradia, embora mais fechada, se abre para as mudanças da empregabilidade (terceirização, serviços e terceiro setor), que reeditam, em alusão ao século XVII, a casa como local de trabalho, e, contraditoriamente a casa/família se rende à violência urbana, fechando-se. Esse novo "isolamento" da casa/família pode ser notado pelos aparatos cotidianos: a) o cuidado com quem adentra a residência ou o condomínio (burgo), cercas, sistemas de vigilância, porteiros, interfones, câmaras, etc. b) a transformação da casa em unidade autônoma como local de lazer e trabalho, com a implementação das diversas utilidades comunicacionais e domésticas (internet, televisão, home theater, piscina, churrasqueira, salão de festas) e dos estoques de comida (freezer).
A família pós-moderna que está se emancipando de tantos traços dos últimos séculos, ao tentar se defender das pressões e mazelas sociais, investe seus esforços para que a casa assuma funções seculares, como resguardo (privado) e trabalho (público). A diferença em relação aos séculos passados reside em alguns elementos como abertura das relações e menores idealização e resignação frente ao destino, que podem ser notadas na ampliação da capacidade de se permitir fazer escolhas.
Referências bibliográficas
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2 ed., Rio de Janeiro: LTC, 1981.BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
FOUCAULT, M. História da sexualidade, 1, 2 e 3. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
GIDDENS, A. A transformação da intimidade. São Paulo: UNESP, 1993.
HUNT, Lynn. A invenção da pornografia: obscenidade e as origens da modernidade. São Paulo: Hedra, 1999.
Citação deste texto:
MÜLLER, Arthur W. Da velha à nova família. Florianópolis:[s.n.], 2009. Disponível em: https://awmueller.com/psicologia/velha-nova-familia.htm