Quando o coração se desfaz!

quando o coração se desfaz
Ainda madrugada, todos dormem ...
A tempestade passou e as gotas de chuva caem suavemente sobre as folhas.
Na radiola Sammi sussura uma velha canção "help me make it through the night".
No escritório a luz do abajur realça o vapor do café saindo da xícara e eu devaneio numa idéia que reluta em virar um texto.

Uma despretenciosa fala de um paciente de muitos predicados, inteligente, adequado, coerente e atencioso, de alguns dias atrás, me pegou. Foi um desabafo sobre a dificuldade de estar presente, de sintonizar com seus amigos e familiares, e comentou que seus amigos mais próximos percebiam isso dele: "você parece nunca estar aqui". Ouvi, acolhi, mas não respondi e em meio a noite chuvosa, sassaricando de volta pra casa me lembrei que já tinha ouvido tais idéias, de outras formas e com outras palavras.

Afinal vivemos na instantaneidade e tantas outras "...dades" que Bauman tão bem descreveu ... estar sem estar, estar acelerando, estar inseguro, estar se liquefazendo, estar volátil... Juntamente com tais idéias vivemos em "Desterro" terra que acolhe, cuida, alimenta ... contudo muitos dos que aqui estão deixaram seus corações em outras terras e estão construindo uma nova vida.

Seria um mero desabafo ligado ao novo ano que se inicia, aos sonhos e promessas que escorreram por entre os dedos, os mesmos dedos que deslizam para vidas distantes, locais distantes ... estar sem estar, estando em tudo, não estando em nada ... devir "omnilocus"!

Estar presente, como é difícil estar presente ... estar presente seria algo como "sintonizado com o coração" ... como é dificil construir um abrigo seguro para os nossos sentimentos se os dedos não sabem mais afagar, dedos adictos que passam o dia a deslizar ... skim, skim ...

skim, skim, skim, skim, skim ...

como um pássaro num rasante
sobre a calma superfície d'água
pequenas bicadas a tocam suavemente
não se aprofunda
com medo de se afogar

como uma alma num rasante
sobre a calma superfície da vida
pequenas roçadas a tocam suavemente
não se aprofunda
com medo de se machucar

sem lugar
sem compromisso
sem consequência
sem coração

Seria esse constante treino em desterrar a vida que teria originado tal desabafo? Por um lado fico tentado a achar que sim, mas como conheço bem quem disse a frase, não ... não é só isso, tem mais, sempre tem mais!

Por vezes o nosso coração ("core") muda, se perde, é arrancado, é esmagado com violência, somos então desintegrados ... ou duma forma oposta nosso coração é nutrido, acariciado, embalado com tanto carinho e delicadeza, que nos integramos a um outro coração e não conseguimos viver sem esse complemento. Em ambos os casos a centralidade, o núcleo, o "core" ... não é mais o mesmo, a nossa essência precisa de algo diferente do que tínhamos como certo e verdadeiro. Nesses momentos se inicia uma jornada e até que ela se encerre não estaremos em lugar algum, vagaremos em busca duma sintonia de nosso núcleo com o entorno.

O velho coração nos acalenta
corremos pra ele
mas não encontramos mais
o que nos era natural

O velho coração não nos acalenta
corremos pra longe dele
mas não encontramos mais
o que nos era natural

corremos
anestesiamos
choramos

corremos
anestesiamos
choramos

corremos
anestesiamos
choramos

o centro devastado
em meio ao desterro
grãozinhos de vida
recolho
empilho
um a um
paro de respirar
com medo de espalhar
...

terapia em floripa   awmueller.com